quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Mal(ben)dita Cidade

Na Bíblia, o tema da cidade é um dos mais relevantes. O nascimento da cidade tem origem na arrogância humana e na independência do homem em relação a Deus. É a linhagem de Caim que dá início à cidade: “Depois Caim fundou uma cidade, à qual deu o nome do seu filho Eno­que” (Gn 4.17b). Caim representa a auto-suficiência humana. Tendo perdido o Éden, o homem está diante da ruptura ecológica da terra que agora produzirá “espinhos e ervas daninhas” (Gn 3.18). A solução humana é apostar em Caim, que não só se revela ingrato para com Deus, mas comete o primeiro assassinato da história bíblica. Caim amplia a ruptura com Deus, com o próximo e com a terra. A solução para os seus problemas é uma só: “fundar uma cidade”. Portanto, a cidade surge como a marca maior da arrogância humana contra Deus. Acompanham a cidade, o surgimento da ciência, da economia e da arte (Gn 4.20-22). O ápice desse progresso perverso aparece quando o texto de Gênesis afirma que o sétimo depois de Adão, pela linhagem de Caim, é Lameque, o primeiro bígamo da história, grande “precursor dos filmes de ‘ação’ de Hollywood”. Os “efeitos especiais” até fazem parte do discurso dele: “Ada e Zilá, ouçam-me; mulheres de Lameque, escutem minhas palavras: Eu matei um homem porque me feriu, e um menino, porque me machucou.” O quadro é simplesmente assustados e apavorante!

Não muito tempo depois, a situação da cidade piora ainda mais. Em Gênesis 11, os homens querem construir uma cidade que pudesse invadir o céu. No mesmo espírito de Caim, eles agora aprofundam a arrogância humana, dizendo: “Vamos construir uma cidade, com uma torre que alcance os céus. Assim nosso nome será famoso ­e não seremos espalhados pela face da terra” (Gn 11.4). A gramática hebraica permite que a expressão “cidade, com uma torre” seja traduzida por “cidade que cresce para o alto”. Como os antigos achavam que o céu estava a cerca de dois quilômetros da terra, a idéia era “invadir o céu”. Era uma espécie de movimento dos “sem céu”, ou dos “invasores do condomínio celestial”. Os homens já “sem terra” e “sem céu”, tornam-se agora “sem comunicação”! De fato, o movimento inicial das cidades cresceu desordenadamente e foi um grande desastre.

Mais uma vez, só Deus para salvar o enredo humano. De forma inesperada, Deus surge da maneira como ninguém poderia esperar. Deus resolve dar início à redenção da cidade por meio de sua própria iniciativa. Por incrível que pareça, Deus constrói e age a partir da mais soberba rebeldia humana. A ação redentora e salvífica de Deus na história tem seu grande centro na monarquia davídica. A própria figura do rei surgira também como sinal da rebeldia e arrogância humana contra Deus (1Sm 8.5-7). Ao querer um rei, imitando os demais povos pagãos, o povo de Israel estava rejeitando a Deus. No entanto, Deus, surpreendentemente não só escolhe um rei, Davi, como também elege uma cidade, Jerusalém. Os símbolos maiores da auto-suficiência e independência humanas tornam-se símbolos da intervenção redentora divina. A suprema derrota transforma-se em vitória absoluta! Os textos bíblicos são inequívocos: “Darei uma tribo ao seu filho a fim de que o meu servo Davi sempre tenha diante de mim um descendente no trono em Jerusalém, a cidade onde eu quis pôr o meu nome (1Re 11.36)” e: “Não jurem de forma alguma: nem pelos céus, porque é o trono de Deus; nem pela terra, porque é o estrado de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei (Mt 5.34,35). Como podemos ver, a monarquia davídica e a cidade de Jerusalém tornam-se o principal palco da intervenção divina na história em favor do homem pecador.

Todavia, a história ainda não termina aqui. O mais surpreendente de tudo aparece no Apocalipse, quando o desfecho da história humana traz de novo a figura da cidade. O texto sagrado é de “parar a respiração”: “Então vi novos céus e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra tinham passado; e o mar já não existia. Vi a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia dos céus, da parte de Deus, preparada como uma noiva adornada para o seu marido. Ouvi uma forte voz que vinha do trono e dizia: “Agora o tabernáculo de Deus está com os homens, com os quais ele viverá. Eles serão os seus povos; o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará dos seus olhos toda lágrima. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou” (Ap 21.1-5). Que coisa! A Nova Jerusalém parece o Éden “urbanizado”. Parece que o antigo jardim passou por um projeto de “arquitetura celestial”. O Éden da redenção é melhor do que o da criação! A cidade que marcou o início do pecado humano é agora marca máxima da redenção. A cidade humana sobe do chão, a cidade de Deus desce dos céus. A cidade humana é efêmera, a de cidade de Deus é eterna. A cidade humana trouxe fragmentação e dor, a cidade de Deus traz união e cura. Deus faz questão de mostrar sua vitória a partir do símbolo máximo do poderio e independência humanos. É surpreendente e verdadeiro: Deus traz a redenção a partir da pior desgraça humana. Diante dessa palavra de esperança e de vitória, olhe lá fora e veja como o sol está mais brilhante, o céu está mais azul, e o ar está menos poluído. Amém!!!

Luiz Sayão – Teólogo. Hebraísta. Coordenador Geral de Tadução da Bíblia NVI.

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